Era uma vez um violoncelo capaz de encantar aos ouvidos mais refinados e de despertar amores tão profundos a ponto de adoecerem aqueles não correspondidos. O tempo só havia aprimorado seu som doce, porém brilhante, e, ainda que as viagens e as mudanças houvessem provocado alguns arranhões, o campo harmônico de espruce, combinado ao salgueiro internamente e o bordo ao fundo e no braço, formava uma robusta e inexorável caixa acústica.
O instrumento estava na família Bettoni há quatro gerações. Havia resistido à imigração da família italiana de Mantova para Santa Catarina, em 1878, para a alegria dos descendentes Bettoni - entre eles, Giacomo, filho de Giovanni e Antonia. Sendo o único homem de uma prole de seis, o caçula herdara o violoncelo e, conforme a tradição da família, aprendera com o pai a manipular o instrumento que, em parte, era responsável pela configuração genealógica da família, sendo determinante na união matrimonial dos diversos "nonnos" e "nonnas".
Era uma tarde de domingo, o tio solteiro Giacomo estava sentado na sala do casarão da família, os sobrinhos a seus pés brincavam e desenhavam, quando a carta anônima chegou. Era oferecida uma enorme quantia pelo estimado violoncelo da família, o que o deixara intrigado. Tentado pelo valor em moedas citado, mesmo sem intenção de venda, a curiosidade fez com que escrevesse para o anônimo, convidando-o a avaliar o violoncelo assim que lhe fosse possível.
No dia seguinte, logo pela manhã fez-se a visita. Maior ainda foi o espanto de Giacomo ao averiguar que o anônimo era, na verdade, uma compradora. A mulher solteira se apresentou como Beatrice Vitti, devia ter 25 anos e parecia de uma tristeza intrínseca, daquelas que configuram um encanto próprio a quem a possui. O caçula Bettoni, surpreso com a inabilidade da moça ao segurar o violoncelo, encheu a pobre de perguntas sobre a finalidade de tal aquisição. "Vou destrui-lo", disse amargurada.
"Este instrumento matou minha mãe de tristeza e arruinou minha vida antes mesmo de eu nascer. Sou fruto de um casamento sem amor que levou minha mãe Catterina Rivellini ao suicídio. Postumamente, encontrei seus escritos que aludiam a Giovanni Bettoni, teu pai, e ao violoncelo encantado, aos quais minha mãe fora amante profunda e fiel. Iludida e não-correspondida, Catterina se ausentou ainda em vida - e eu só conheci sua ausência."
Atordoado com o emocionado testemunho, Giacomo começa a tocar, com uma compaixão determinada, uma das suites de Bach para violoncelo, e a filha renegada de pronto se encanta com tão virtuoso som. Era o consolo que sempre procurara e pelo qual ansiava todos os dias. Giacomo e Beatrice fitavam-se ardentemente com os olhos e, como nunca, desejavam alguém. Pela primeira vez Beatrice compreendeu sua mãe. Estava selada a configuração futura de mais uma geração Bettoni.
Thatiane C. Pires
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