domingo, 28 de março de 2010

Quanto a um conto,

Entre súplicas mal disfarçadas, ela aguardava a sua vez desejando, porém, que nunca chegasse. Se lhe perguntassem o que ela estava esperando, diria: a morte. E falaria isso com ares de veterana, cujo corpo já sentira outras duas vezes o fim da vida e que, sem escrúpulos, ousava continuar vivendo. Desta vez, no entanto, seus olhos traíram-na. Seus antigos cúmplices agora revelavam medo, reflexo do que ela no íntimo sentia. Um sentimento de impotência diante da situação que vivia.
A sala de espera ainda era a mesma e a garota se via sentada no mesmo estofado de mau gosto azul marinho com flores amarelas. Na porta do estabelecimento não havia qualquer identificação. Todas as que ali entravam o faziam sem anunciar, sequer encaravam as outras da sala ou levantavam os olhos. A música ambiente não bastava para dissimular o clima tenso e mal disfarçava os gemidos e às vezes gritos vindos lá de dentro.
Era a terceira vez que a garota recorria aos serviços da Vó Lélia, dona do lugar. O primeiro aborto, aos 12 anos, fora um procedimento tranquilo, incomum para a idade, o que de certa forma a deixou confiante, a ponto de não hesitar ao tirar a segunda gravidez, aos 15 anos. Não podia ignorar, porém, o quanto a morte pesava dentro de si e como o tempo morria em sua vida. Seus 17 anos tinham agora cheiro de 30, de tão repletos que estavam de problemas.
"Você", Vó Lélia disse apontando a garota. Entraram no outro cômodo, aquele de onde os gemidos vinham. A senhora reconheceu a pequena. "Faz o que... dois anos?", Vó Lélia perguntou e a garota fez que sim. Depois, com má vontade, a velha indagou se era necessário repetir as instruções quanto ao procedimento. "Por favor", disse a garota nervosa, instruções nunca eram demais, aprendera isso da pior maneira. "Fique tranquila, não há nada novo para você", a mais velha acrescentou ao ver a já rara cor sumir por completo da face da coitada.
Por que estava fazendo isso? Procurou argumentos, mas nenhum lhe pareceu suficiente no momento. Iam começar a intervenção, a menina pôs-se a gritar. E podia jurar que junto ao seu grito de medo e de dor berrava o seu ventre. Viu-se incapaz de tomar qualquer decisão, um sentimento já bem conhecido por ela: a mesma impotência que a impedia de mandar na própria vida. Desistiu. Ainda era tempo, seu ventre estava intacto. Pela primeira vez, iria sentir a vida. Iria nascer do próprio parto.
Thatiane C. Pires

sábado, 13 de março de 2010

Quanto ao sentimento,

"[...] Mas sentimentos são a água de um instante. [...]"

Clarice Lispector, em A Legião Estrangeira

Quanto a um conto,

O Violoncelo

Era uma vez um violoncelo capaz de encantar aos ouvidos mais refinados e de despertar amores tão profundos a ponto de adoecerem aqueles não correspondidos. O tempo só havia aprimorado seu som doce, porém brilhante, e, ainda que as viagens e as mudanças houvessem provocado alguns arranhões, o campo harmônico de espruce, combinado ao salgueiro internamente e o bordo ao fundo e no braço, formava uma robusta e inexorável caixa acústica.
O instrumento estava na família Bettoni há quatro gerações. Havia resistido à imigração da família italiana de Mantova para Santa Catarina, em 1878, para a alegria dos descendentes Bettoni - entre eles, Giacomo, filho de Giovanni e Antonia. Sendo o único homem de uma prole de seis, o caçula herdara o violoncelo e, conforme a tradição da família, aprendera com o pai a manipular o instrumento que, em parte, era responsável pela configuração genealógica da família, sendo determinante na união matrimonial dos diversos "nonnos" e "nonnas".
Era uma tarde de domingo, o tio solteiro Giacomo estava sentado na sala do casarão da família, os sobrinhos a seus pés brincavam e desenhavam, quando a carta anônima chegou. Era oferecida uma enorme quantia pelo estimado violoncelo da família, o que o deixara intrigado. Tentado pelo valor em moedas citado, mesmo sem intenção de venda, a curiosidade fez com que escrevesse para o anônimo, convidando-o a avaliar o violoncelo assim que lhe fosse possível.
No dia seguinte, logo pela manhã fez-se a visita. Maior ainda foi o espanto de Giacomo ao averiguar que o anônimo era, na verdade, uma compradora. A mulher solteira se apresentou como Beatrice Vitti, devia ter 25 anos e parecia de uma tristeza intrínseca, daquelas que configuram um encanto próprio a quem a possui. O caçula Bettoni, surpreso com a inabilidade da moça ao segurar o violoncelo, encheu a pobre de perguntas sobre a finalidade de tal aquisição. "Vou destrui-lo", disse amargurada.
"Este instrumento matou minha mãe de tristeza e arruinou minha vida antes mesmo de eu nascer. Sou fruto de um casamento sem amor que levou minha mãe Catterina Rivellini ao suicídio. Postumamente, encontrei seus escritos que aludiam a Giovanni Bettoni, teu pai, e ao violoncelo encantado, aos quais minha mãe fora amante profunda e fiel. Iludida e não-correspondida, Catterina se ausentou ainda em vida - e eu só conheci sua ausência."
Atordoado com o emocionado testemunho, Giacomo começa a tocar, com uma compaixão determinada, uma das suites de Bach para violoncelo, e a filha renegada de pronto se encanta com tão virtuoso som. Era o consolo que sempre procurara e pelo qual ansiava todos os dias. Giacomo e Beatrice fitavam-se ardentemente com os olhos e, como nunca, desejavam alguém. Pela primeira vez Beatrice compreendeu sua mãe. Estava selada a configuração futura de mais uma geração Bettoni.
Thatiane C. Pires

sábado, 6 de março de 2010

Quanto a Ele,


Quanto à sabedoria,

"A sabedoria nos chega quando já não serve para nada."

(Extraído do livro O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez)

Quanto à perturbação,

"A arte é feita para perturbar; a ciência tranquilizar."
Georges Braque

Nota: Adoro ser perturbada nesse sentido! Sem perturbação, o oceano seria mera poça d'água parada em muda agonia!

Quanto à madrugada,

O prazer da solidão de uma madrugada proibida:
todos já exploram o inimaginável subconsciente,
enquanto o infrator,
sob o luar alvo e insuficiente,
escreve poemas de amor.